A Gratuidade da Justiça no Processo Civil Brasileiro: Requisitos, Alcance e Análise Jurisprudencial

A gratuidade da justiça configura-se como um pilar fundamental do acesso à jurisdição no ordenamento jurídico brasileiro, materializando o princípio constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Este benefício, destinado a assegurar que a condição econômica não obste a busca por direitos perante o Poder Judiciário, encontra sua disciplina primordial nos artigos 98 a 102 do Código de Processo Civil (CPC) de 2015. A sua aplicação, contudo, demanda a análise de requisitos específicos, a compreensão de seu alcance e a constante atualização frente à dinâmica da jurisprudência dos Tribunais Superiores, notadamente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

Fundamentos e Requisitos para a Concessão da Gratuidade da Justiça

Fundamentos e Requisitos para a Concessão da Gratuidade da Justiça
Fundamentos e Requisitos para a Concessão da Gratuidade da Justiça

A garantia da gratuidade da justiça possui assento constitucional, conforme o disposto no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988, que estabelece o dever do Estado em prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. A gratuidade da justiça e seus parâmetros legais No plano infraconstitucional, o CPC/2015, em seus artigos 98 a 102, detalha os contornos desse direito.

O art. 98 do CPC/2015 define o âmbito de aplicação do benefício, abrangendo tanto pessoas naturais quanto jurídicas, brasileiras ou estrangeiras, que demonstrem insuficiência de recursos para arcar com as despesas processuais. Artigos 98 a 102 do Novo CPC A comprovação dessa insuficiência varia conforme a natureza da parte requerente:

Para as pessoas naturais, a legislação processual civil adota uma presunção relativa de veracidade da alegação de insuficiência deduzida por elas. Nos termos do § 3º do art. 99 do CPC/2015, basta a simples declaração da parte de que não possui condições de pagar as custas e despesas do processo sem prejuízo de seu sustento ou de sua família para que o benefício seja, em princípio, concedido. A gratuidade de justiça no Novo CPC Essa presunção, contudo, não é absoluta e pode ser afastada caso o magistrado identifique elementos nos autos que evidenciem a capacidade financeira da parte, cabendo a esta, nesse caso, comprovar a alegada hipossuficiência. O STJ tem flexibilizado a forma de comprovação, admitindo documentos alternativos à declaração de imposto de renda, como declarações de baixa renda, para pessoas naturais. STJ aceita documentos alternativos para comprovar pobreza

No que tange às pessoas jurídicas, a sistemática é distinta. A Súmula 481 do STJ é clara ao dispor que faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica, com ou sem fins lucrativos, que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais. Súmula 481 do STJ Súmula 481 STJ: Justiça gratuita para pessoa jurídica Diferentemente das pessoas naturais, a pessoa jurídica não goza da presunção de hipossuficiência, recaindo sobre ela o ônus de comprovar, de forma cabal, a alegada insuficiência de recursos. Essa comprovação geralmente exige a apresentação de documentos como balanços patrimoniais, demonstrações de resultado do exercício, declarações de imposto de renda da pessoa jurídica, entre outros elementos que evidenciem a precária situação financeira.

Entretanto, para as entidades sem fins lucrativos, a jurisprudência do STJ consolidou um entendimento que, embora não dispense a comprovação, inverte o ônus probatório. Nesses casos, a mera alegação de necessidade econômica pela entidade é considerada suficiente para a concessão inicial do benefício, cabendo à parte contrária, se assim desejar, impugnar o pedido e demonstrar a capacidade financeira da entidade para arcar com as despesas processuais. Justiça gratuita para entidades filantrópicas O STJ, inclusive, já se manifestou especificamente sobre a gratuidade para entidades sem fins lucrativos em causas de interesse coletivo, confirmando a possibilidade de concessão. STJ confirma gratuidade para entidades sem fins lucrativos

O STF, por sua vez, já validou a exigência de comprovação econômica para a concessão da gratuidade, mas ressaltou que tal exigência não pode configurar um obstáculo indevido ao acesso à Justiça, em consonância com o art. 5º, LXXIV, da CF/88. STF valida exigência de comprovação econômica para gratuidade

Alcance e Efeitos da Gratuidade da Justiça

Alcance e Efeitos da Gratuidade da Justiça
Alcance e Efeitos da Gratuidade da Justiça

Uma vez concedida, a gratuidade da justiça abrange uma série de atos processuais, conforme detalhado no § 1º do art. 98 do CPC/2015. Incluem-se na abrangência do benefício as taxas ou custas judiciais, os selos postais, as despesas com publicações na imprensa oficial, a indenização devida à testemunha que, quando empregada, comprovar a percepção de salário, as despesas com a realização de exame de código genético (DNA) e de outros exames essenciais, os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor, entre outros. (CPC/2015, art. 98, § 1º).

É crucial destacar que a gratuidade da justiça não exime a parte beneficiária da responsabilidade pelo pagamento das verbas de sucumbência, como os honorários advocatícios da parte contrária, caso seja vencida na demanda. Contudo, a exigibilidade dessas obrigações fica suspensa por um período de 5 (cinco) anos, somente podendo ser executada se o credor demonstrar que cessou a situação de insuficiência de recursos do beneficiário. (CPC/2015, art. 98, § 2º).

O benefício da gratuidade da justiça pode ser requerido em qualquer fase do processo, desde a petição inicial até a fase recursal. A decisão que indefere o pedido de gratuidade ou que o revoga é passível de impugnação por meio de agravo de instrumento, nos termos do art. 101 do CPC/2015.

Revogação da Gratuidade da Justiça

Revogação da Gratuidade da Justiça
Revogação da Gratuidade da Justiça

A gratuidade da justiça não é um benefício perene e pode ser revogada caso se verifique a alteração da situação econômica da parte beneficiária ou a existência de má-fé na obtenção do benefício. O art. 100 do CPC/2015 estabelece que a parte contrária pode oferecer impugnação à concessão da gratuidade no prazo de 15 (quinze) dias, apontando a inexistência dos requisitos legais para a sua concessão ou a ocorrência de má-fé.

Caso o juiz acolha a impugnação e revogue o benefício, a parte que dele usufruía será condenada ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios que deixou de adiantar, desde que tenha agido com má-fé. (CPC/2015, art. 100, parágrafo único). A revogação implica o restabelecimento da obrigação de arcar com as despesas processuais, retroagindo os efeitos da decisão. O não pagamento das despesas no prazo legal pode acarretar a extinção do processo, sem resolução do mérito, se a parte for a autora, ou o prosseguimento da execução, se for a parte executada. (CPC/2015, art. 102).

Análise Jurisprudencial Relevante

Análise Jurisprudencial Relevante
Análise Jurisprudencial Relevante

A jurisprudência do STJ e do STF desempenha papel fundamental na interpretação e aplicação das normas relativas à gratuidade da justiça, buscando harmonizar o direito fundamental de acesso à justiça com a necessidade de coibir abusos.

Conforme já mencionado, o STJ consolidou o entendimento sobre a necessidade de comprovação da hipossuficiência para pessoas jurídicas (Súmula 481), embora com a ressalva da inversão do ônus para entidades sem fins lucrativos. Súmula 481 do STJ Súmula 481 STJ: Justiça gratuita para pessoa jurídica Justiça gratuita para entidades filantrópicas STJ confirma gratuidade para entidades sem fins lucrativos

Outro ponto relevante na jurisprudência do STJ diz respeito à possibilidade de utilização de documentos alternativos para comprovar a hipossuficiência de pessoas naturais, como a declaração de baixa renda, afastando a exigência exclusiva da declaração de imposto de renda em alguns casos. STJ aceita documentos alternativos para comprovar pobreza

No âmbito do STF, a discussão sobre a constitucionalidade da exigência de comprovação econômica foi abordada na ADI 5.215/DF, na qual a Corte validou a exigência, mas com a ressalva de que ela não pode se tornar um obstáculo intransponível ao acesso à Justiça. STF valida exigência de comprovação econômica para gratuidade O STF também já se manifestou sobre a aplicação da gratuidade em casos de pequeno valor, como no RE 659.631/GO, assegurando o benefício para evitar que o custo do processo inviabilize o acesso à justiça em demandas de menor complexidade econômica. STF assegura gratuidade em casos de pequeno valor

Atualmente, o STJ discute, no âmbito do Tema Repetitivo 1.178, a possibilidade de adoção de critérios objetivos de renda para a concessão da gratuidade da justiça, o que demonstra a constante evolução da matéria e a busca por maior segurança jurídica na aplicação do benefício.

Conclusão

A gratuidade da justiça, disciplinada nos artigos 98 a 102 do CPC/2015, representa um instrumento essencial para a efetivação do acesso à justiça no Brasil. Sua concessão, pautada pela comprovação da insuficiência de recursos (com presunção relativa para pessoas naturais e exigência de prova para pessoas jurídicas, ressalvadas as entidades sem fins lucrativos), busca equilibrar a garantia fundamental com a necessidade de evitar o uso indevido do benefício. A jurisprudência do STJ e do STF, ao interpretar e aplicar esses dispositivos, contribui para a uniformização do entendimento e a adaptação da norma às diversas realidades fáticas. A constante atenção às decisões dos Tribunais Superiores é, portanto, indispensável para a correta aplicação do instituto da gratuidade da justiça pelos profissionais do Direito.

Sobre o Autor

Valter Marcondes B. Leite é Advogado Corporativo atuante desde 2016, Mentor Empresarial e Professor. É Docente de Direito e Administração na Cogna Educação, ministrando aulas como Direito Cibernético. Possui MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas (FGV), Pós-Graduação em Direito Digital e Compliance (com especialização em LGPD) pela Damásio Educacional, Mestrado em Empreendedorismo e Gestão pela UNIFACCAMP e formação em Mediação e Arbitragem. Sua trajetória inclui experiência como Digital Compliance Officer, além de posições em diretoria jurídica e arbitragem. Complementarmente, possui sólida experiência em gerenciamento de projetos e metodologias de qualidade (como ISO 9000 e Seis Sigma). Unindo seu conhecimento jurídico à sua experiência como desenvolvedor, também criou sistemas de informação para acompanhamento de processos jurídicos. Especialidades: Direito Empresarial (Societário, Contratos, Falências), Direito Digital (incluindo LGPD), Compliance, Direito Tributário, Direito do Trabalho, Direito Civil, Direito de Tecnologia da Informação, Propriedade Intelectual, Mediação e Arbitragem, Governança Corporativa, Gestão de Pessoas, Gerenciamento de Projetos e Metodologias de Qualidade (Six Sigma/ISO).

Perguntas Frequentes

Quem tem direito à gratuidade da justiça no Brasil?

Têm direito à gratuidade da justiça tanto pessoas naturais quanto jurídicas, brasileiras ou estrangeiras, que comprovem insuficiência de recursos para arcar com as despesas processuais. Para pessoas naturais, a alegação de insuficiência possui presunção relativa de veracidade, enquanto pessoas jurídicas (com ou sem fins lucrativos) devem demonstrar a impossibilidade financeira, ressalvada a inversão do ônus para entidades sem fins lucrativos.

Quais despesas processuais são abrangidas pela gratuidade da justiça?

A gratuidade da justiça abrange diversas despesas, incluindo taxas e custas judiciais, selos postais, publicações na imprensa oficial, indenização de testemunha empregada, despesas com exames essenciais (como DNA), honorários de advogado, perito, intérprete ou tradutor.

A gratuidade da justiça isenta o beneficiário do pagamento de honorários de sucumbência?

Não. A gratuidade da justiça não isenta o beneficiário do pagamento das verbas de sucumbência, como honorários advocatícios da parte contrária, caso seja vencido. Contudo, a exigibilidade dessas obrigações fica suspensa por 5 anos, podendo ser executada apenas se comprovada a cessação da situação de insuficiência de recursos.

Em que momento do processo posso requerer a gratuidade da justiça?

O benefício da gratuidade da justiça pode ser requerido em qualquer fase do processo, desde a petição inicial até a fase recursal.

Como a gratuidade da justiça para pessoas jurídicas sem fins lucrativos é tratada pela jurisprudência?

Para entidades sem fins lucrativos, a jurisprudência do STJ consolidou o entendimento de que a mera alegação de necessidade econômica é suficiente para a concessão inicial do benefício, cabendo à parte contrária o ônus de impugnar e comprovar a capacidade financeira da entidade.

A exigência de comprovação de hipossuficiência para a gratuidade da justiça é constitucional?

Sim, o STF já validou a exigência de comprovação econômica para a concessão da gratuidade (ADI 5.215/DF), mas ressaltou que tal exigência não pode configurar um obstáculo indevido ao acesso à Justiça, em consonância com o art. 5º, LXXIV, da CF/88.

Referências Normativas e Bibliográficas

  • Constituição Federal de 1988.
  • Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950.
  • Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
  • Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 481.
  • Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.728.098/SC.
  • Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.550.231/SP.
  • Supremo Tribunal Federal. ADI 5.215/DF.
  • Supremo Tribunal Federal. RE 659.631/GO.
  • https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/direito-constitucional/gratuidade-de-justica-2013-parametros-legais-para-concessao
  • https://www.projuris.com.br/novo-cpc/art-98-a-102-do-novo-cpc/
  • https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-gratuidade-de-justica-no-novo-cpc/253081373
  • https://jurishand.com/sumula-stj-481-de-01-agosto-2012
  • https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/04102020-Acesso-gratuito-a-Justica-a-vulnerabilidade-economica-e-a-garantia-do-devido-processo-legal.aspx
  • https://www.normaslegais.com.br/guia/clientes/justica-gratuita-entidades-filantropicas.htm
  • https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/4100000032490962/Decis%C3%A3o%20monocr%C3%A1tica-0020829-10.2025.8.16.0000;jsessionid=5344d5950a19b335abf22dea4a29
  • https://advds.com.br/publicacoes/stf-pleno-reconhece-repercussao-geral-e-reafirma-jurisprudencia-pela-possibilidade-de-fixacao-de-teto-de-rpv-inferior-ao-constitucionalmente-estipulado/

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