O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 introduziu um modelo processual que busca a colaboração entre todos os envolvidos para a efetividade da justiça. O princípio da cooperação processual, consagrado em seu artigo 6º, estabelece que todos os sujeitos do processo – juízes, partes, advogados e auxiliares da justiça – devem atuar em conjunto para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. Este princípio representa uma mudança significativa em relação ao modelo anterior, predominantemente adversarial, e impõe novos deveres e responsabilidades a todos os participantes do processo. A sua correta compreensão e aplicação são fundamentais para advogados e demais profissionais do Direito que atuam sob a égide do novo CPC.
Fundamentos e Natureza Jurídica da Cooperação Processual

O Artigo 6º do CPC/2015 e sua Inovação
O artigo 6º do CPC/2015 dispõe expressamente que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Esta norma não é uma mera recomendação ética, mas um dever jurídico com implicações práticas diretas na condução dos processos. A sua inclusão no Código reflete a influência de modelos processuais comparados e a busca por um sistema mais célere e eficaz. A ideia central é transformar o processo de uma “arena de batalha” para uma “comunidade de trabalho”, onde a colaboração é a tônica para a solução dos litígios.
A cooperação processual está intrinsecamente ligada a outros princípios fundamentais do processo civil, como a boa-fé objetiva e o contraditório. A cooperação processual deriva do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) e se entrelaça com a boa-fé objetiva (art. 5º, CPC) e o contraditório dinâmico (art. 9º, CPC) A cooperação processual deriva do devido processo legal e se entrelaça com a boa-fé objetiva e o contraditório dinâmico. A boa-fé exige que as partes ajam com probidade e lealdade, enquanto o contraditório, em sua dimensão substancial, garante a participação efetiva das partes na construção da decisão judicial. A cooperação potencializa esses princípios, promovendo um ambiente processual mais transparente e colaborativo.
Distinção entre Cooperação e Outros Princípios
É crucial distinguir o princípio da cooperação de outros princípios processuais para evitar interpretações equivocadas. A cooperação não se confunde com a inquisitividade, onde o juiz assume um papel ativo na busca por provas e na condução do processo, muitas vezes em detrimento da autonomia das partes. No modelo cooperativo, o juiz atua como um facilitador, um gestor do processo, auxiliando as partes a superar obstáculos e garantindo o equilíbrio, mas sem substituir a iniciativa probatória que compete primariamente a elas.
Da mesma forma, a cooperação não anula o caráter adversarial do processo. As partes continuam a defender seus interesses em posições contrapostas. No entanto, essa defesa deve ocorrer dentro de limites éticos e colaborativos, evitando-se condutas meramente protelatórias ou que visem surpreender a parte contrária ou o juiz. O princípio da cooperação impõe deveres jurídicos específicos, como esclarecimento, prevenção de nulidades, auxílio técnico e diálogo construtivo O princípio da cooperação impõe deveres jurídicos específicos.
Os Deveres do Juiz no Modelo Cooperativo

O princípio da cooperação impõe ao magistrado uma série de deveres que visam garantir a efetividade e a justiça do processo. Estes deveres transformam a postura do juiz de um mero espectador para um participante ativo na condução do litígio.
Dever de Esclarecimento (Aufklärungspflicht)
Um dos principais deveres do juiz no modelo cooperativo é o dever de esclarecimento. Este dever impõe ao magistrado a obrigação de sanar dúvidas sobre os pedidos, fatos ou fundamentos jurídicos apresentados pelas partes. O juiz tem a obrigação de esclarecer dúvidas sobre os pedidos, fatos ou fundamentos jurídicos apresentados pelas partes O juiz tem a obrigação de esclarecer dúvidas. Se a petição inicial, por exemplo, apresentar vícios ou obscuridades, o juiz deve indicar precisamente o que precisa ser corrigido, concedendo prazo para a emenda, em vez de simplesmente indeferi-la. Este dever é particularmente relevante em casos envolvendo partes que não possuem pleno domínio da técnica processual, garantindo que a falta de conhecimento técnico não seja um obstáculo intransponível ao acesso à justiça.
Dever de Prevenção (Präventionspflicht)
O dever de prevenção exige que o juiz alerte as partes sobre riscos processuais e vícios sanáveis antes de tomar decisões que possam prejudicá-las. O juiz deve alertar as partes sobre riscos processuais, como a preclusão de direitos ou a rejeição de alegações por vícios formais O juiz deve alertar as partes sobre riscos processuais. Isso significa que o magistrado deve apontar irregularidades e conceder oportunidade para que sejam corrigidas, evitando decisões surpresa e nulidades desnecessárias. Um exemplo clássico é a necessidade de intimar a parte para regularizar o preparo de um recurso antes de decretar sua deserção. Este dever está alinhado com o princípio da primazia do julgamento de mérito, que orienta o CPC/2015.
Dever de Diálogo (Erörterungspflicht)
O dever de diálogo impõe ao juiz a necessidade de consultar as partes sobre questões fáticas ou jurídicas relevantes antes de proferir decisões. O diálogo processual exige que o juiz consulte as partes antes de decidir questões fáticas ou jurídicas complexas O diálogo processual exige que o juiz consulte as partes. Isso garante que as partes tenham a oportunidade de se manifestar e influenciar o convencimento do magistrado, fortalecendo o contraditório. Em audiências de saneamento, por exemplo, o juiz deve debater com as partes os pontos controvertidos, as provas necessárias e a organização do processo. Este diálogo é essencial para a construção conjunta da decisão e para evitar que o juiz decida com base em fundamentos sobre os quais as partes não tiveram a chance de se manifestar.
Dever de Auxílio (Unterstützungspflicht)
O dever de auxílio impõe ao juiz a obrigação de auxiliar as partes a superar obstáculos que dificultem o acesso à justiça ou a produção de provas. Isso pode incluir a determinação de diligências para obter informações ou documentos que a parte, por si só, não conseguiria. Este dever é especialmente importante em situações de assimetria de informações ou recursos entre as partes, buscando equilibrar a relação processual e garantir que a desigualdade material não impeça a efetivação dos direitos.
Os Deveres das Partes no Modelo Cooperativo

A cooperação processual não é uma via de mão única; ela também impõe deveres significativos às partes e seus advogados. A atuação colaborativa das partes é essencial para o bom funcionamento do sistema processual e para a efetividade da justiça.
Boa-fé Processual e Lealdade
As partes têm o dever de agir com boa-fé e lealdade durante todo o processo. As partes devem agir com lealdade, abstendo-se de condutas dilatórias ou fraudulentas (artigo 77, CPC) As partes devem agir com lealdade. Isso significa que devem expor os fatos conforme a verdade, não formular pretensões ou defesas destituídas de fundamento, não produzir provas falsas e não praticar atos que configurem litigância de má-fé. O artigo 77 do CPC/2015 elenca uma série de deveres das partes, cuja violação pode acarretar a aplicação de sanções. A lealdade processual é um pilar da cooperação, garantindo que a disputa ocorra de forma ética e transparente.
Dever de Informação e Comprovação
As partes devem fornecer ao juízo e à parte contrária as informações relevantes para o deslinde da causa e comprovar suas alegações por meio das provas adequadas. As partes devem fornecer informações precisas e comprová-las com meios adequados (artigo 373, §1º, CPC) As partes devem fornecer informações precisas. O autor, ao propor a ação, deve apresentar os fatos e fundamentos jurídicos de forma clara e precisa, juntando os documentos indispensáveis à propositura da demanda. O réu, por sua vez, deve contestar especificamente as alegações do autor, apresentando suas razões de fato e de direito e as provas que pretende produzir. Em um processo cooperativo, a omissão intencional de informações relevantes ou a apresentação de dados falsos são condutas incompatíveis com o princípio.
Participação Ativa na Instrução
A cooperação exige que as partes participem ativamente da fase de instrução processual, colaborando para a produção das provas necessárias. Isso inclui comparecer a audiências, fornecer documentos solicitados pelo juiz ou pela parte contrária, e colaborar na realização de perícias e outras diligências. A recusa injustificada em colaborar com a produção probatória pode gerar presunções desfavoráveis ou a aplicação de multas, conforme previsto no CPC/2015.
Aplicação Prática e Jurisprudência Relevante

O princípio da cooperação processual tem aplicação em todas as fases do processo civil e tem sido objeto de diversas decisões pelos tribunais brasileiros, que buscam concretizar seus ditames e estabelecer seus limites.
Aplicação nas Fases Processuais
Na fase postulatória, a cooperação se manifesta no dever do juiz de auxiliar o autor na emenda da petição inicial O princípio da cooperação exige colaboração entre partes, juízes e outros atores. Na fase de saneamento, o diálogo entre juiz e partes é crucial para a delimitação das questões de fato e de direito e a organização da produção probatória O diálogo processual exige que o juiz consulte as partes. Na fase instrutória, a cooperação impõe deveres de colaboração na produção de provas As partes devem fornecer informações precisas. Na fase decisória, o juiz deve evitar decisões surpresa, consultando as partes sobre questões não debatidas O juiz tem a obrigação de esclarecer dúvidas. Nas fases recursal e executória, a cooperação orienta a atuação do juiz na condução dos procedimentos e das partes na busca pela efetivação do julgado. A cooperação minimiza vícios processuais ao permitir correções tempestivas A cooperação minimiza vícios processuais.
Limites da Cooperação: Autonomia das Partes e Imparcialidade do Juiz
Apesar da importância da cooperação, é fundamental reconhecer seus limites para não comprometer a autonomia das partes e a imparcialidade do juiz. A cooperação não autoriza o juiz a substituir a iniciativa das partes na propositura da ação ou na formulação de pedidos. Tampouco permite que o magistrado atue como “advogado” de uma das partes, auxiliando-a de forma desequilibrada na produção de provas ou na argumentação jurídica. A imparcialidade judicial é um pilar do devido processo legal e deve ser preservada.
A jurisprudência do STJ e do STF tem se posicionado sobre esses limites. O STJ, por exemplo, já decidiu que o dever de cooperação não impõe ao juiz a obrigação de realizar diligências que cabem primariamente à parte, como a busca por bens do devedor na execução. O STF, em casos envolvendo políticas públicas, tem buscado um equilíbrio entre a atuação judicial para garantir direitos fundamentais e o respeito à discricionariedade administrativa, orientando a cooperação para o diálogo e a busca por soluções conjuntas. A cooperação na fase de saneamento diminui em 30% o número de diligências posteriores A cooperação na fase de saneamento diminui em 30% o número de diligências posteriores.
Cooperação e Negócios Jurídicos Processuais
O princípio da cooperação processual dialoga diretamente com a possibilidade de as partes celebrarem negócios jurídicos processuais (Art. 190, CPC/2015). A cooperação cria um ambiente propício para que as partes, de comum acordo, ajustem procedimentos, definam ônus probatórios ou estabeleçam prazos diferenciados. A boa-fé e a lealdade, elementos da cooperação, são essenciais para a validade e eficácia desses negócios, garantindo que não sejam utilizados para prejudicar a parte contrária ou o bom andamento do processo.
Desafios e Críticas na Implementação da Cooperação

Apesar dos avanços trazidos pelo CPC/2015, a plena implementação do princípio da cooperação processual enfrenta desafios e críticas na prática forense.
Resistências Culturais e Formalismo
Uma das principais dificuldades é a resistência cultural de alguns profissionais do Direito, acostumados a um modelo mais formalista e adversarial. A mudança de mentalidade, que exige uma postura mais colaborativa e menos litigiosa, nem sempre é fácil. O formalismo excessivo, que ainda prevalece em algumas práticas forenses, pode esvaziar o conteúdo do princípio da cooperação, transformando-o em letra morta.
Assimetria de Recursos entre Partes
Em processos onde há grande assimetria de recursos entre as partes (econômicos, técnicos, informacionais), a aplicação da cooperação pode ser mais complexa. O dever de auxílio do juiz torna-se crucial nesses casos para garantir que a parte mais vulnerável não seja prejudicada pela sua hipossuficiência. No entanto, encontrar o ponto de equilíbrio entre auxiliar a parte e manter a imparcialidade é um desafio constante para o magistrado.
Risco de Perda de Imparcialidade
Como mencionado anteriormente, há o risco de que a atuação proativa do juiz, no cumprimento de seus deveres cooperativos, seja percebida como parcialidade. É fundamental que o magistrado atue com transparência, fundamentando suas decisões e garantindo que todas as partes tenham igualdade de tratamento e oportunidade de manifestação. A linha entre auxiliar e favorecer é tênue e exige constante atenção.
Sobrecarga do Poder Judiciário
A implementação plena do modelo cooperativo exige maior dedicação e tempo do magistrado em cada processo, o que pode colidir com a realidade de varas sobrecarregadas e grande volume de processos. A falta de estrutura e de pessoal no Poder Judiciário pode dificultar a realização de audiências de saneamento colaborativas, o diálogo constante com as partes e a análise aprofundada de todas as questões.
Conclusão
O princípio da cooperação processual, positivado no artigo 6º do CPC/2015, representa um avanço significativo para o processo civil brasileiro, buscando torná-lo mais justo, efetivo e célere. Ele impõe deveres a todos os sujeitos processuais, transformando a dinâmica da relação entre juiz e partes. A atuação colaborativa do juiz, por meio dos deveres de esclarecimento, prevenção, diálogo e auxílio, e a conduta ética e leal das partes são essenciais para a concretização deste princípio.
Apesar dos desafios na sua implementação, como as resistências culturais, a assimetria entre as partes e a sobrecarga do Poder Judiciário, a jurisprudência dos tribunais superiores tem contribuído para delinear os contornos da cooperação e garantir sua aplicação adequada, respeitando sempre os limites da autonomia das partes e da imparcialidade judicial. Para que o princípio da cooperação alcance seu pleno potencial, é necessária uma mudança contínua na cultura jurídica, com a valorização do diálogo, da boa-fé e da colaboração em todas as etapas do processo. A capacitação de magistrados e servidores, o investimento em tecnologia e a conscientização de advogados e partes são passos importantes nessa direção.
Sobre o Autor
Valter Marcondes B. Leite é Advogado Corporativo atuante desde 2016, Mentor Empresarial e Professor. É Docente de Direito e Administração na Cogna Educação, ministrando aulas como Direito Cibernético. Possui MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getulio Vargas (FGV), Pós-Graduação em Direito Digital e Compliance (com especialização em LGPD) pela Damásio Educacional, Mestrado em Empreendedorismo e Gestão pela UNIFACCAMP e formação em Mediação e Arbitragem. Sua trajetória inclui experiência como Digital Compliance Officer, além de posições em diretoria jurídica e arbitragem. Complementarmente, possui sólida experiência em gerenciamento de projetos e metodologias de qualidade (como ISO 9000 e Seis Sigma). Unindo seu conhecimento jurídico à sua experiência como desenvolvedor, também criou sistemas de informação para acompanhamento de processos jurídicos. Suas especialidades abrangem Direito Empresarial (Societário, Contratos, Falências), Direito Digital (incluindo LGPD), Compliance, Direito Tributário, Direito do Trabalho, Direito Civil, Direito de Tecnologia da Informação, Propriedade Intelectual, Mediação e Arbitragem, Governança Corporativa, Gestão de Pessoas, Gerenciamento de Projetos e Metodologias de Qualidade (Six Sigma/ISO).
Perguntas Frequentes sobre o Princípio da Cooperação Processual
O que diferencia o princípio da cooperação do modelo adversarial clássico?
O modelo adversarial clássico foca na disputa entre as partes, com o juiz atuando de forma mais passiva. O princípio da cooperação, introduzido pelo CPC/2015, propõe uma “comunidade de trabalho”, onde juiz, partes e demais sujeitos processuais colaboram ativamente para a obtenção de uma decisão justa e efetiva em tempo razoável, impondo deveres recíprocos de conduta.
Quais são os principais deveres do juiz sob o princípio da cooperação?
Os principais deveres do juiz incluem o dever de esclarecimento (sanar dúvidas das partes), o dever de prevenção (alertar sobre riscos processuais e vícios sanáveis), o dever de diálogo (consultar as partes sobre questões relevantes antes de decidir) e o dever de auxílio (ajudar as partes a superar obstáculos no processo).
Como o princípio da cooperação impacta a atuação das partes no processo?
Para as partes, a cooperação impõe deveres como agir com boa-fé e lealdade (evitando condutas protelatórias ou fraudulentas), fornecer informações precisas e comprovar suas alegações, e participar ativamente da produção de provas. A violação desses deveres pode acarretar sanções processuais.
O princípio da cooperação limita a autonomia das partes ou a imparcialidade do juiz?
Não, o princípio da cooperação deve ser aplicado dentro dos limites da autonomia das partes e da imparcialidade do juiz. Ele não autoriza o juiz a substituir a iniciativa das partes na condução do processo ou a favorecer indevidamente uma delas. A atuação cooperativa do juiz deve ser transparente e garantir a igualdade de tratamento.
Qual a relação entre o princípio da cooperação e os negócios jurídicos processuais?
O princípio da cooperação cria um ambiente favorável para a celebração de negócios jurídicos processuais, previstos no Art. 190 do CPC/2015. A boa-fé e a lealdade, elementos essenciais da cooperação, são fundamentais para a validade e eficácia desses acordos entre as partes, que visam adaptar o procedimento às especificidades da causa.
Referências Normativas e Bibliográficas
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
- BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
- TJDFT. Jurisprudência em Temas: Novo Código de Processo Civil – Princípio da Cooperação.
- Revista FT. O Princípio da Cooperação Processual e sua Relação com o Princípio da Primazia do Julgamento do Mérito no CPC/2015.
- RSD Journal. O Princípio da Cooperação no Novo Código de Processo Civil.
- EMERJ. Revista Eletrônica da EMERJ, nº 7, 2021.
- Migalhas. O Princípio da Cooperação Processual no CPC/2015.
- Enciclopédia Jurídica PUCSP. Princípio da Colaboração.
- DireitoNet. Princípio da Cooperação.
- Revista FT. Saneamento e Organização Instrutória Compartilhados no CPC/15.
- Gran Cursos Online. Princípios da Cooperação CPC.
- Diário Processual. STJ: Cooperação processual e o dever de auxílio do juiz.